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"Infectada" e longe dos palcos, Calcanhoto mira samba em CD

25 mar 2011 - 12h43
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Renato Beolchi
Direto de São Paulo

Adriana Calcanhoto está infectada. Diz ser portadora do "micróbio do samba". Este também é o nome de seu oitavo álbum de estúdio: o mais autoral, segundo sua avaliação. Um disco que chegou às lojas esta semana, mas que - diferente da regra - não terá shows. E não é o tal micróbio que afasta Calcanhoto dos palcos, e sim um cisto na mão direita que provoca uma forte tendinite. "Tocar piano não dói tanto. Não posso ficar horas, mas não machuca tanto. O violão está impossível", disse em entrevista exclusiva ao Terra.

Adriana Calcanhoto lança seu disco mais autoral: O Micróbio do Samba
Adriana Calcanhoto lança seu disco mais autoral: O Micróbio do Samba
Foto: Fernando Borges / Terra

Ouça músicas de Adriana Calcanhoto grátis no Sonora

Gaúcha radicada no Rio, Calcanhoto não se mete em polêmica à toa. Elogia a eleição da presidente Dilma Rousseff, mas afirma não ser da sua competência avaliar a escolha de Ana de Hollanda para o Ministério da Cultura, dona de uma gestão tão recente quanto polêmica.

Se, por um lado fecha com o antigo ministro Gilberto Gil na defesa do selo do Creative Commons - um debate que colocou ele e o amigo Caetano Veloso em lados opostos do ringue -, por outro, defende a decisão do MinC no que diz respeito ao sinal verde para o discutido blog de poesias de Maria Bethânia captar R$ 1,3 milhão em dinheiro da iniciativa privada, beneficiada com isenção fiscal.

Mas os freios da língua somem quando o assunto é música. Ao falar da sua relação com o samba, do processo de gestação, composição e gravação do novo disco, se empolga. Relembra os primeiros sambas que compôs e como, numa gravação com a Mangueira do Amanhã, percebeu ter nascido com O Micróbio do Samba, "doença" que, segundo ela, a faz ouvir samba até nas composições clássicas do austríaco Gustav Mahler.

Leia abaixo a íntegra da entrevista:

Como foi o processo de composição de O Micróbio do Samba?

O Micróbio do Samba é, para mim, uma safra que começa com o Vai Saber, um samba que eu fiz sob encomenda para a Mart'Nália, em 2005. Mas ela não me pediu um samba, ela me pediu uma música. "Eu quero gravar alguma coisa sua", disse. Eu fui pra casa e fiz esse samba que saiu inteiro. Um tempo depois eu compus o Beijo Sem. Porque o samba que eu fiz para a Mart'nália, a Marisa (Monte) gravou. Depois eu fiz o (Beijo Sem) para a Marisa, e a Thereza (Cristina) gravou. Esses são os dois primeiros. Antes disso, eu fiz alguns sambas em parceria com o Dé Palmeira: músicas dele e letras minhas. Um deles (Certas Noites) é o que a Simone gravou. Mas isso pra mim ainda é uma safra anterior. Os sambas do Dé têm uma "blue note", uma coisa híbrida para o pop rock, até mesmo para o blues, que a safra do Micróbio não tem. Eu fiz esses dois, depois fiz mais alguns. E, quando tinha uns oito, eu pedi para o Domenico (Lancelotti, músico e produtor) me ajudar a registrar. Porque eu queria ter o "folder". Assim como eu separei as trilhas para cinema, as trilhas de balé, eu queria botar os sambas em um cantinho. E fizemos uma sessão registrando essas músicas. E a combinação do set da bateria, do baixo acústico do Alberto (Continentino), e do meu violão, me pareceu muito mais do que um registro. Eu senti naquela gravação um espírito de demo.

E quanto tempo se passou entre essa demo e a gravação de fato?

Ouvimos o primeiro registro e fomos para a Europa (em julho de 2010). A gente tinha alguns shows pra fazer. Na Itália começamos a ouvir e a pensar: "poxa, vamos partilhar essa gravação". Além disso, na Itália, o Domênico ganhou uma caixa (de bateria modelo) Hollywood (muito utilizado nos kits da Ludwig do ex-beatle Ringo Starr) e ele disse: "temos que gravar de novo, nem que seja só por causa da caixa". Nessa época eu encontrei o nome Micróbio do Samba e me deparei com essa coisa, e o título me ajudou a ler essa safra. Doze canções, uma atrás da outra, não necessariamente são um álbum. Mas eu senti que esse era, que as músicas estavam conversando entre si. E aí, por causa da caixa do Domênico, por causa do violão que eu comprei, o disco brotou.

O disco parece ter uma estética musical bem homogênea...

É, exatamente. Foi isso que eu ouvi na demo e falei: "é um disco".

Chega a dar impressão de ser um projeto antigo seu. É isso mesmo?

O que tem de sonho antigo, pelo menos pra mim, é a forma de gravar. Gravar ao vivo, incorporando os erros e as imperfeições da performance. Isso deixa o disco quente, com dinâmica. Chegamos num ponto em que a minha relação musical com o Domênico e Alberto - já gravamos Partimpim (2004) e Maré (2008) - faz com que a gente cada vez fale menos. Cada um pega o seu instrumento e...

Se entendem no olhar...

É. No ouvido.

Segundo a ficha técnica você toca violão, piano, guitarra, caixa de fósforos, cuíca e bandeja de chá. É o seu disco mais autoral?

É o meu disco mais autoral, porque é o primeiro que só tem coisas minhas. Nesse sentido, sim, totalmente. Só tem uma melodia que não é minha, que é a de Vem Ver (composta por Dadi). O resto é tudo meu. Já esse negócio de tocar outros instrumentos, mais do que fazer solos, o objetivo era timbrar, e revelar essa coisa que eu entendo do mundo como sendo samba, os sons... Esse "click" que ele faz (aponta para o fotojornalista do Terra Fernando Borges que registrava a entrevista) eu entendo como uma virada de tamborim. Tudo é assim para mim. E tocar a caixa de fósforo é um jeito de externar um pouco o que eu ouço o tempo todo. Então eu vou lá e faço isso, o que eu escuto em tudo. É claro que, no disco, eu toco isso no contexto do samba. Mas eu faço isso sempre. Ouvindo (o compositor austríaco Gustav) Mahler, se você me perguntar onde está o samba ali, eu te mostro.

E isso vem de sempre ou de agora, por estar mergulhada nessa sonoridade?

Vem de sempre. Aí que eu acho que eu nasci com o "micróbio". A diferença é que, hoje em dia, eu consigo identificar melhor. Por exemplo, eu te digo com segurança que eu posso te mostrar onde é que eu ouço o samba. Antes eu não conseguia. Faz alguns anos, no meu segundo disco, eu gravei com a Mangueira do Amanhã. Eu e o (percussionista) Marcelo Costa dirigíamos as crianças para que elas entrassem fazendo uma coisa mais polirítmica, dentro de uma base nossa. Mas, como o ouvido deles é como o meu - eles só ouvem samba -, só conseguiam fazer aquilo como samba. E foi nessa gravação que eu me dei conta. Eu falei para o Marcelo: "sou dessa turma aqui".

E como vai ser levar tudo isso para o palco?

Não vai ter show porque eu estou com uma lesão na mão direita que me impede de tocar. Não só essas coisas todas, como também o violão. E fazer um show de um disco que eu compus tudo no violão, e gravei tudo no violão, e ainda gravei guitarra, piano - e não posso fazer nada disso agora - pra mim seria muito sofrido. Então a decisão é de não ter show.

E o que é a lesão? Uma tendinite?

É um cisto no tendão que causa uma tendinite e dói para tocar. Eu vou operar, mas quando você larga o seu instrumento, ele também te larga. Em dobro. Então a volta, com fisioterapia, recuperação, se eu me comprometer a fazer o show sei como vou ficar afobada. Eu não conseguiria fazer Micróbio, que é um disco que vem do meu violão. É sobre o meu violão.

Isso compromete também seu processo de composição...

Compromete. Mas eu acho que é para o bem. Porque eu gosto tanto de tocar violão que, se não fosse uma situação como essa, talvez eu nunca sairia da zona de conforto de compor no violão para tentar as coisas que eu serei obrigada a tentar.

Por exemplo? Piano?

Tocar piano não dói tanto. Não posso ficar horas, mas não machuca tanto. O violão está impossível. Mas trabalhar com batidas eletrônicas, como eu já fiz canções com batidas do Garage Band (software musical da Apple). Acelera e aquilo vira um frevo, vira marcha.

Em que mão é a lesão?

É a direita. A mão do dedilhado. A mão do samba, que é a da batida.

Depois de dois discos de estúdio e um ao vivo, a Partimpim se aposentou?

A Partimpim? Eu não posso responder por ela. Não sei por onde ela anda. Talvez brincando por aí.

Você usa muito computador?

Uso muito. Não tanto para compor como vou usar agora. Mas eu passo o dia no computador.

E você é digitalizada musicalmente?

Eu não gosto de mp3. Por que não um formato de mais qualidade? Por que a gente está nivelando por baixo a experiência da audição? As pessoas não ouvem mais os graves (no formato mp3). Isso eu acho das coisas menos interessantes na Internet. Com a banda larga, por que todo mundo não pode usar AIFF ou Wave (outros formatos de áudio mais pesados, porém com mais qualidade)? Isso eu acho chato. É evidente que funciona, até para trabalhar (a música). Não vou dizer que eu não uso, fazendo cópias, etc. Mas você usufruir? O próprio Micróbio do Samba tem uma sonoridade que você vai perder se ouvir em mp3.

A MPB tem se voltado bastante para o samba. Ainda assim, hoje, não tem tanto espaço na mídia. Ela precisa ser revista?

Eu acho que a MPB faz isso o tempo todo. E você mesmo disse: novas pessoas estão fazendo samba...

Mas não chega a recuperar espaço na mídia...

Mas eu não acho que todas as pessoas da MPB querem ser "mainstream". Eu tenho a sensação de que a MPB se reinventa o tempo todo. São ciclos. Às vezes mais, às vezes menos efervescentes, por causa dos nomes, dos artistas. Às vezes você tem uma quantidade maior de artistas produzindo, outras menor, mas que têm uma qualidade incrível. É complicado, porque o nível dessa música, a MPB, é feito de Noel, Caymmi, João, Tom. Você tem que ralar. Teve uma época em que todo mundo falava: "não acontece mais nada, não tem compositores, não tem intérpretes". Eu não acho. Acho que tem. Mas não é mais essa coisa de só ter um gênero. E nesse ponto a Internet ajuda muito. Você ouve o que você quer. Não vejo mais esse interesse de ser "mainstream". Como aquela época do Brasil em que você só ouvia lambada, depois só axé, só sertanejo. A Internet ajudou a escangalhar com a monocultura.

O que você destacaria na nova geração da MPB?

Tem muita gente bacana. Eu gostei muito do disco do Leo Cavalcanti, eu gosto muito da Tulipa Ruiz, Céu. É difícil falar porque sempre fica alguém de fora.

O que você acha que há de melhor na música brasileira hoje? É essa pluralidade?

Isso eu acho que corresponde mais à nossa música. Hoje eu acho que tudo caminha mais para o rumo do que é a música no sentido da pluralidade, da diversidade, do que no tempo da monocultura: a facilidade que você tem em produzir a sua música. Com um laptop todo mundo pode fazer, todo mundo pode postar. Ou seja, não só fazer, como também lançar.

E de pior?

O que eu vejo de pior... (faz longa pausa). Eu nunca olho para as coisas assim. Não sei te dizer o que eu acho. Não vai muito com o meu raciocínio.

Há algumas semanas, Gil e Caetano polarizaram uma discussão sobre o Creative Commons. Sendo artista e compositora, como você se posiciona nesse debate?

A gente tem muito que ralar ainda nessas questões. Eu acho o Brasil um pouco atrasado em relação a outros países nessa coisa de direito digital e venda de música online. Mas não estamos parados, estamos andando. A questão está presente e efervescente. Sobre o Creative Commons, o interessante é que você dá o que você quiser, se você quiser, e o quanto você quiser. Esse tipo de liberdade é importante. A gente vai ficar definindo o que vem a ser propriedade intelectual de uma forma que engesse? Não acho bom. Nós estamos em plena transição. Temos que, além de discutir o assunto, experimentar novas formas. Para os artistas que estão começando é mais fácil. Para quem está chegando agora há mais possibilidades de furar bloqueios.

O Brasil está mais ou menos preconceituoso?

(Faz longa pausa). Como eu vou saber? Eu acho que estamos caminhando. Todo processo é sempre cíclico. Todo avanço precisa de ciclos. Nós avançamos, aí a caretice responde, aquilo anda para trás. E assim vai: damos dois passos para frente e um para trás. Vamos devagar, mas pelo menos vamos.

Como você recebeu a eleição da presidente Dilma?

Acho importante. Achava que a gente tinha que ter essa oportunidade de ter uma mulher no comando. As mulheres administram bem. Esse lado gestor dela pode ser muito interessante. É um ganho para as mulheres, sem dúvida.

E a indicação da ministra Ana de Hollanda para a Cultura?

Aí já não é mais o meu departamento. Eu nem estou tão inteirada para te dar um julgamento. Acho que não é da minha competência...

Você acompanhou a polêmica envolvendo Maria Bethânia, que recebeu sinal verde do Ministério da Cultura para captar R$ 1,3 milhão para um blog de poesias? Como você enxerga a lei Rouanet?

Primeiro, não é um blog de poesias. Pelo que eu entendi, vão fazer filmes, com bom acabamento, e vão botar na Internet. Ou seja, pessoas trabalhando pela qualidade, e as pessoas estão resmungando e falando de Bethânia, que é uma pessoa que tem uma atitude clara em relação ao mundo e à música? Eu acho uma afobação, uma loucura, as pessoas saírem fazendo ilações. Eu própria não posso fazer porque não sei detalhes dessa história. Só achei um pouco exagerado as pessoas gritarem sobre uma coisa que não está completamente explicada. Acho que o fato de se ter usado a palavra "blog" deve ter complicado, porque todo mundo pode fazer um blog de graça. E por que ela precisa desse dinheiro? Mas é que não é isso. Eu ouvi o Andrucha (Waddington, cineasta que ficaria responsável pelos vídeos do projeto) falando de qualidade e acabamento, e ele e a Bethânia não se juntariam para fazer uma coisa qualquer.

Então, acha injustificável a argumentação de quem critica?

O debate da lei eu acho justificável. Todo debate é. Mas a afobação da conclusão. Está tudo errado, gente. Calma, vamos esclarecer antes...

Fonte: Terra
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